Joaquim Ribeiro de Souza Junior
Promotor de Justiça no Maranhão
É de conhecimento público que, recentemente, o ex-Governador do Estado do Maranhão editou medida provisória equiparando os subsídios de Procurador do Estado, aos subsídios de Desembargador e Procurador de Justiça (repita-se, não se trata de equiparação com juízes e promotores, mas sim com desembargadores e procuradores de Justiça).
As demais carreiras jurídicas já se mobilizam e em breve, delegados de polícia e defensores poderão ganhar o mesmo que desembargadores e procuradores de Justiça (cf. abaixo pequeno óbice dos delegados, facilmente superável, segundo a própria classe).
É certo que todas as carreiras jurídicas são importantes, mas não podemos faltar com o bom senso.
Essa “equiparação/superação” representa, simplesmente, a aniquilação total e absoluta da magistratura e do Ministério Público do Estado do Maranhão. Dias atrás, estava numa livraria jurídica de São Luís quando, involuntariamente, acabei ouvindo a conversa de dois “concurseiros” acerca dos certames que estão previstos para este ano. De repente, um deles disparou a indagação: “você vai fazer o concurso para promotor?”. Para minha surpresa o outro respondeu: “eu não ... já pensou ter que passar minha vida no interior?.... vou fazer é o concurso de procurador do Estado que ganha a mesma coisa, não vai para o interior, trabalha bem menos, não tem tanta cobrança e ainda pode advogar”. Continuando, o primeiro interlocutor disse: “faz pra promotor, só para ganhar título”.
Tal afirmação oriunda de uma pessoa que nem conheço me deixou pensativo. Atualmente, as carreiras jurídicas menos atrativas são a da magistratura e do Ministério Público, analisando o binômio ônus X bônus. Por outro lado, não existe carreira jurídica mais atrativa no País que a de Procurador do Estado do Maranhão. Nem mesmo ser ministro do Supremo Tribunal Federal é melhor do que ser procurador do Estado mais pobre da Federação. Basta citar que um procurador ganha 90,25% do subsídio de ministro do Supremo, com a vantagem de ainda poder advogar e ratear entre seus pares os honorários de sucumbência, o que é peremptoriamente vedado àqueles, bem como a todas as demais carreiras jurídicas.
Portanto, não seria nenhuma surpresa se na lista de inscritos do próximo concurso de procurador do Estado do Maranhão estivessem nomes como Gilmar Mendes, Eros Grau, Carmem Lúcia, Carlos Ayres Brito, dentre outros ilustres ministros da nossa Suprema Corte. Além disso, certamente dentre os inscritos estarão juízes federais, procuradores da república, procuradores do trabalho, juízes do trabalho, procuradores federais, juízes, promotores, defensores públicos e assim por diante.
Se o cargo de procurador do Estado do Maranhão é bem mais interessante que o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, o que dizer se compararmos com a magistratura e Ministério Público maranhenses. A estes é absolutamente vedado o exercício da advocacia. Ademais, passam não menos do que vinte anos no interior, recebem rigorosa fiscalização da sociedade, das respectivas corregedorias, além do CNJ e CNMP, respectivamente.
Quem defende a equiparação salarial de procurador do Estado com promotor de Justiça, ou não tem a menor noção do que seja o Ministério Público, ou possui interesses outros, que não o bem comum.
Certa vez ouvi o argumento de um procurador do Estado alegando que seria justo ganhar a mesma coisa que um promotor, posto que, quando o MP propõe uma ação judicial contra o Estado, quem contesta é um procurador, ficando ambos integrando a mesma relação jurídica, o que legitimaria a equiparação.
O argumento é no mínimo uma aberração jurídica, advinda de paixões classistas. Quando o MP propõe uma ação contra o Estado, de fato, geralmente quem contesta a mesma é um procurador. Ocorre que, o promotor, ao iniciar a ação, está a defender o interesse público primário, ou seja, o interesse da sociedade em geral, tais como direitos fundamentais dos cidadãos violados pelo próprio Estado, saúde, educação, meio ambiente, consumidor, dentre outros. Quando o procurador do Estado contesta tal ação, está em defesa do interesse público secundário, ou seja, aquilo que a Administração e o administrador têm por relevante. Na maioria das vezes, defende apenas os interesses fazendários do Estado, o que apenas indiretamente reflete na vida do cidadão.
Essa é a grande diferença entre as instituições. O Ministério Público representa a sociedade, enquanto os procuradores representam o Estado e prestam consultoria jurídica ao Executivo e são obrigados a defender o interesse público secundário, mesmo que contrarie o interesse público primário, devendo, por dever funcional, contestar a ação do MP, este sim, voltado à defesa dos interesses da sociedade.
Fosse por isso, quando o MP processa um município, o seu procurador poderia exigir do Prefeito o mesmo salário de promotor.
Poderia argumentar que o procurador também teria legitimidade para propor ACP e ações de improbidade. Errado, tal legitimidade é dada ao Estado que pode, ou não, se valer de procuradores de carreira para exercitá-la. Ademais, faço o desafio de levantarmos quantas ações de improbidade e de defesa de interesses difusos o MP propôs desde a Constituição de 1988, e quantas os procuradores do Estado propuseram.
Realmente, a única atribuição comum dos promotores e procuradores do Estado é a defesa do patrimônio público. Ocorre que, esta é a atribuição única do procurador do Estado que a exerce ou através de representação judicial do Estado, ou prestando consultoria ao Executivo. Além desta atribuição de defesa do patrimônio público, o MP possui inúmeras outras diretamente outorgadas pelo texto constitucional, tais como o exercício soberano da pretensão punitiva estatal (se ao juiz cabe decidir entre quem vai ser condenado ou inocentado, ao MP cabe decidir entre quem vai ou não ser processado criminalmente), controle externo da atividade policial, defesa de interesses difusos, fiscalização de diversas entidades que compõem o terceiro setor, defesa do regime democrático de direito, defesa da probidade administrativa, saúde, educação, meio ambiente, dentre outras.
Quando o Estado está descumprindo algum de seus deveres constitucionais, o cidadão procura um promotor de Justiça ou um procurador do Estado?
Também não justifica a equiparação o fato da Constituição ter estipulado o mesmo teto estadual para as carreiras jurídicas. Estipular teto, não significa obrigar as entidades federativas a pagar o mesmo subsídio. Em nenhuma passagem do texto constitucional se extrai a obrigatoriedade de equiparação entre estas carreiras.
Isto nos leva a uma pergunta? A Constituição deu a mesma importância aos procuradores do Estado e ao Ministério Público? Possuem a mesma responsabilidade?
A reposta a tal indagação é evidentemente negativa. Devemos ter em mente a importância e responsabilidade de ambos os cargos. Se a importância e responsabilidade fossem a mesma, a Constituição não teria exigido três anos de prática jurídica para juiz e promotor sem repetir a exigência quanto aos consultores do Executivo. Se a importância e responsabilidade fossem a mesma, a Constituição não teria criado dois órgãos nacionais para fiscalizar as atuações profissionais dos magistrados e promotores, respectivamente CNJ e CNMP, sem dizer nada a respeito da advocacia pública, talvez por entender que cabe ao Executivo de cada Estado analisar se a consultoria jurídica que está recebendo está sendo realizada a contento. Se a importância e responsabilidade fossem a mesma, a Constituição não teria regulado minuciosamente diversas questões relacionadas ao Ministério Público e à magistratura, tais quais, promoções, remoções, garantias, vedações, criação de órgão especial, rol amplo de atribuições, juiz e promotor natural, escalonamento nacional de subsídios, dentre outras, sendo que quase nada foi dito em relação à advocacia pública. Será porque que o legislador constituinte não pensou em criar o princípio do procurador do Estado natural ou do consultor do Executivo natural?
Poderia utilizar dezenas de laudas transcrevendo diversas passagens do texto constitucional, onde o legislador constituinte deu maior importância e responsabilidade às carreiras jurídicas da magistratura e do Ministério Público, mas isso é tão óbvio que representaria perda de tempo. Um Estado onde tais carreiras são as menos atrativas do ponto de vista do binômio ônus X bônus, não pode ser um ente federado que se disponha a defender seriamente os direitos fundamentais dos cidadãos. Este Estado estaria mais preocupado com a cobrança de sua dívida ativa, lançamentos tributários, ações fazendárias diversas, dentre outras questões afetas ao interesse público secundário.
A equiparação de subsídios entre magistratura e Ministério Público vem expressa na CF (art. 128, § 4º, c/c art. 93, V, ambos da CF). Já os procuradores do Estado, utilizando o discurso da equiparação, na verdade querem a superação, inclusive mantendo seus respectivos escritórios de advocacia. Não querem a parte ruim (ônus), só a parte boa (bônus).
O que causa certa estranheza é o silêncio quase completo no meio jurídico em relação a esta matéria. Os colegas promotores e juízes talvez tenham se preocupado mais com auxílio moradia (de caráter temporário) e não se atentaram para a gravidade do problema (de caráter permanente). Já as demais carreiras jurídicas estaduais reclamaram um pouco, mas logo perceberam que o interessante é deixar a coisa como está e pleitear o mesmo tratamento dos procuradores. Portanto, em breve, se tudo permanecer como está também delegados de polícia e defensores ganharão o mesmo que desembargadores e procuradores de Justiça (obs. existe pequeno óbice quanto ao teto estadual para delegados, facilmente contornável com o aumento do subsídio de Governador). Afinal, se procuradores do Estado são equiparados com desembargadores, porque não defensores e delegados de Polícia, argumentam.
Acrescente-se que existem, no mínimo, cinco inconstitucionalidades flagrantes no diploma legislativo estadual responsável pela equiparação, a saber: 1) violação ao artigo 37, XIII, da CF que dispõe ser vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público (não era possível a equiparação com desembargadores e vinculação aos ministros do STF, posto que a lei dispõe que sempre que ministros tiverem aumento, o subsídio dos procuradores aumentarão automaticamente); 2) ausência manifesta dos pressupostos para edição de medida provisória (relevância e urgência), ou será que a urgência teria algo a ver com o julgamento de algum processo perante o TSE?; 3) Ausência de discussão da Medida Provisória nas CCJ e demais comissões legislativas, nos termos do regimento interno da Assembléia (parece que a urgência era, de fato, urgentíssima), sendo aprovada no último dia de governo da gestão passada; 4) Necessidade de Lei Complementar Estadual para dispor sobre organização e funcionamento da carreira de Procurador do Estado, nos termos da Constituição Estadual; 5) violação ao art. 169, caput e § 1º, da CF que exige prévia dotação orçamentária suficiente e autorização específica na LDO para concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração aos servidores públicos.
Portanto, para que o bom senso se restabeleça, resta torcer para que alguma dessas providências seja adotada: 1) que a nova gestão administrativa do Estado não dê cumprimento ao referido diploma legal, posto estar pacificado em nossos Tribunais que o chefe do Executivo não está obrigado a cumprir lei manifestamente inconstitucional; 2) em sendo dado cumprimento à Lei Estadual, que a Procuradoria Geral de Justiça e a Promotoria de Defesa da Probidade de São Luís, elaborem recomendação à chefia do Executivo alertando para as inconstitucionalidades apontadas; 3) não havendo atendimento da recomendação, que a Procuradoria Geral de Justiça ingresse com Adin Estadual perante o TJ/MA, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da lei, bem como medida cautelar que lhe suspenda a eficácia (alegando, obviamente violação à Constituição Estadual); 4) em não sendo o entendimento da PGJ, que seja dado conhecimento ao Procurador-Geral da República para que ingresse com Adin perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a violação dos dispositivos constitucionais violados. Só uma dessas medidas poderia neutralizar este golpe mortal na magistratura e no MP maranhenses.
Não deixemos o assunto morrer, dê sua opinião, seu silêncio é o que permite a “legislação em causa própria”.